A universalidade dos atendimentos em USFs
JUARES CIVIDINI JR
Fui criado dentro de um hospital privado no interior de Mato Groso, onde minha mãe fez carreira no setor administrativo. Tenho memórias de instrumentos cirúrgicos pendurados em alguma sala hipersecreta, onde eu brincava de esconde-esconde. Cresci induzido a pensar em medicina como aquele ofício que se exerce dentro dos muros de um hospital. A própria palavra medicina sempre me trazia à mente a figura do cirurgião, a pessoa vestida de verde, com touca, máscara e com as mãos enluvadas meio sujas de sangue.
O nome que se dá a isso é hospitalocentrismo. Ou seja, a prática médica como algo restrito a um ambiente tecnologicamente complexo.
Ao ingressar na escola de medicina, deparei-me com esse conceito para poder explodi-lo nas primeiras aulas sobre o nosso Sistema Único de Saúde, o SUS. O processo saúde-doença envolve escalas tão diferentes, que não precisamos ir ao hospital para tratar uma simples cefaleia, por exemplo. Podemos destinar ambientes de cuidado mais simples para problemas de saúde de menor risco. Surgem então as Unidades de Saúde de Família e Comunidade, as USFs, ou os famosos “postinhos de saúde”.
“Nas USFs o trabalho visa à universalidade, segundo a qual se atende todas as pessoas, independente de idade, etnia, origem ou renda. Nas USFs o trabalho é longitudinal, visa acompanhar ao longo do tempo os indivíduos”
A ciência descobriu que levar um atendimento mais próximo da pessoa e de sua família, antes mesmo de qualquer doença aparecer, é muito mais efetivo e mais barato para a sociedade. Desenvolver práticas coletivas de prevenção nos locais onde as pessoas moram garante melhores índices de saúde em longo prazo.
Nas Unidades de Saúde da Família (USFs) o trabalho é coletivo, compartilhado entre vários profissionais (médicos, enfermeiros, cirurgiões dentistas, psicólogos, agentes comunitários, técnicos em enfermagem e em saúde bucal). Nas USFs o trabalho visa à universalidade, segundo a qual se atende todas as pessoas, independente de idade, etnia, origem ou renda. Nas USFs o trabalho é longitudinal, visa acompanhar ao longo do tempo os indivíduos (desde a concepção e nascimento, até a infância, juventude, velhice e morte).
A beleza da prática familiar e comunitária reside nesses conceitos, que muitas vezes parecem utópicos, mas que, no cotidiano, se mostram profundamente verdadeiros e exequíveis.
O problema é o desvalor que as carreiras dentro das USFs sofrem, a começar pela remuneração das categorias – sobretudo dos agentes comunitários. O problema é o desrespeito de outras especialidades quanto ao trabalho que desenvolvemos com um público que, num país assustadoramente desigual, muitas vezes é negligenciado por elas. O problema é o desconhecimento da sociedade como um todo do que é desenvolvido dentro dos “postinhos de saúde”. Nós não cuidamos só da vacinação, nós fazemos tudo e mais um pouco, com muita organização, considerando a ciência em primeiro lugar, e com esperança de que o nosso trabalho faz a diferença para uma determinada população.
A Medicina de Família e Comunidade extrapola em muito as paredes do hospital. Ela está na rua, na casa das pessoas, nas escolas e creches, nos asilos, e até nas igrejas e nas empresas.
Hoje, para mim, a palavra medicina quer dizer cuidado. Porém, no espaço onde há uma coletividade para se conquistar, garantir e manter sua saúde é essencial, antes mesmo do aparecimento de alguma doença.
Juares Cividini Jr é médico e mestre em Ciências da Saúde pela UFMT; médico de Família e Comunidade pela Secretaria de Estado de Saúde de Mato Grosso. Atualmente integra a equipe da USF Jardim Imperial, em Cuiabá. CRM MT 8062 e RQE 4755
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