Entidade envia recomendação ao Estado sobre regularização de gleba em Santa Terezinha
Mato Grosso é o estado do Centro-Oeste que apresenta o maior número de conflitos por terra, segundo o relatório ‘Conflitos no Campo Brasil 2022’, da Comissão Pastoral da Terra (CPT). Em escala nacional, é o quinto com a maior quantidade de ocorrências. Ao todo foram registradas 147 disputas, espalhadas por 45 munícipios. Entre elas, a da Gleba Carlos Pessioli, localizada no munícipio de Santa Terezinha (a 1.219 km de Cuiabá), ganhou especial atenção nesta semana, depois de o Conselho Estadual de Direitos Humanos (CEDH) elaborar uma recomendação ao governo para que, diante da iminência das 100 famílias que nela vivem serem despejadas, fosse feita sua destinação à política pública de reforma agrária e a regularização fundiária dos seus 5 mil hectares.
“Eu creio que é importante a gente se posicionar e o benefício que a regularização fundiária traz é fazer com que a terra seja realmente desconcentrada. Porque há uma grande tentativa de, cada vez mais, se concentrar terra na mão de empresas e pequenos grupos que empregam poucas pessoas. Poucas pessoas vivem disso, dessa produção que a terra dá. Há uma superexploração da terra e uma impossibilidade das pessoas que mais precisam poderem também acessá-la, o que é um direito de todos”, declara o presidente da CEDH, Inácio José Werner.
O documento foi elaborado a partir de diversas manifestações de órgãos públicos e organizações sociais, incluindo um relatório produzido pela regional de Mato Grosso da CPT. Nesta publicação, a entidade faz uma descrição detalhada, por meio de depoimentos e imagens, da vida social e econômica das famílias que ocupam aquele território desde 2008.
Segundo o texto, em síntese, os moradores da gleba “têm suas vidas estruturadas, com produção de alimentos para consumo próprio, criação de pequenos animais e, como fonte de renda a cadeia leiteira e venda do excedente de produção em feiras da região”.
RELATOS DE VIOLÊNCIA
Não é só o medo de serem despejados que ronda as cabeças dos residentes da gleba, localizada na região do Alto Araguaia, na divisa com o estado do Pará. A situação tem se mantido sob tensão também em virtude dos relatos de ameaças e agressões, que de início teriam sido praticadas por policiais militares do estado vizinho e, posteriormente, pelos agentes da ATA, equipe de segurança privada, contratada pela “Fazenda Fartura”.
Um destes eventos chegou a ser registrado pela CPT. “Um jovem casado, morador a mais de 6 anos da Gleba Pelissioli, relatou que os seguranças da fazenda lhe tomaram sua moto, bateram nele e quase o deixaram cego, ficando com a moto por mais de 15 dias e que foi preso por policiais de Vila Rica MT por dias como “ladrão” de madeira. O fato ocorreu quando ele estava na terra do seu vizinho que foi invadida pelos seguranças que alegaram que ele estava na terra da fazenda. (Conflito ocorrido em 22/08/2022)”, trouxe a entidade em seu relatório.
No rol de violências apontado pela publicação da CPT também constam incêndios criminosos, solicitação de documentos aos transeuntes e até registros de que os agentes da empresa de segurança circulam com veículos descaracterizados e sem placas, muitas vezes encapuzados e armados fora da área de serviço.
“Sobre a questão das ameaças, somos cercados por seguranças que fazem rondas diariamente dentro do assentamento e recebemos ameaças de agressões físicas e psicológicas. São mais de 30 boletins de ocorrência registrados contra a segurança da empresa ATA […] Há ainda duas guaritas, que regulam a entrada das pessoas, na estrada municipal que dá acesso às cidades de Vila Rica e Santana do Araguaia. Em uma delas, colocaram dois quebra-molas que foram retirados pela prefeitura, porque estava causando acidentes com ônibus que levam os alunos para a escola”, conta o presidente da Associação de Pequenos Produtores Rurais de Santa Terezinha, Eloir Marcos dos Santos, afirmando que até as máquinas da prefeitura já foram impedidas de trabalhar nas estradas da região pela equipe de segurança particular.
Este caso, ocorrido em 4 de outubro de 2022, chegou a ser registrado no relatório da CPT. À época, a prefeitura, acompanhada por vereadores e agricultores, tentaram negociar, sem sucesso, a passagem pela região, informando à segurança responsável pela obstrução da via que a conduta era contra a lei e que ela teria que retirar a porteira. O caso foi registrado na delegacia civil de Santa Terezinha pelos agricultores, que aguardam providências.
O representante da associação pontua também que, muitas das vezes, os trabalhadores rurais não têm recebido apoio das autoridades policiais para conter os casos de violência.
Segundo o texto, em síntese, os moradores da gleba “têm suas vidas estruturadas, com produção de alimentos para consumo próprio, criação de pequenos animais e, como fonte de renda a cadeia leiteira e venda do excedente de produção em feiras da região”.
“Somos todos produtores que vivem da agricultura familiar, produzindo alimentos vindos da terra. Nossa comunidade é referência na bacia leiteira do munícipio, sendo que já temos dois resfriadores de leite, doados pela Seaf (Secretaria de Estado de Agricultura Famliar) […] Temos um grande suporte da prefeitura com assistência social e manutenção das estradas, disponibilizando três ônibus que levam as crianças para a escola, dando total apoio para comunidade. Todas as secretarias da prefeitura têm nos ajudado a crescer”, diz o presidente da Associação de Pequenos Produtores Rurais de Santa Terezinha, Eloir Marcos dos Santos.
Desde que chegaram à gleba, os ocupantes já foram despejados, conforme informado no relatório, em duas oportunidades: nos anos de 2008 e 2014. Em 2020, diante da ação movida pela empresa Agropecuária São Sebastião do Araguaia, dona da Fazenda São Sebastião também chamada de “Fazenda Fartura”, em que ela reivindica a propriedade de uma área de mais de 46 mil hectares, as famílias procuraram pela CPT.
“Ela [a recomendação] foi originada a partir da demanda da própria comunidade, no sentido dela se sentir injustiçada e da forma como estava sendo tratada diante do despejo da Justiça. E veio reforçada a partir dos dados concretos que a Comissão Pastoral da Terra conseguiu levantar com relação à situação que vivem as famílias e todo período que já elas que vivem naquele espaço”, explica Inácio José Werner.
Os habitantes da gleba contestam a tese da empresa com relação à propriedade das terras, afirmando que elas se tratam de territórios devolutos e, portanto, de domínio público. Isto porque, segundo os trabalhadores rurais, o processo de compra da área por Carlos Pelissioli, iniciado em 1954, não foi concluído, de forma que o título provisório emitido em 1957 a ele pelo Estado “caducou”. Eles afirmam que os pareces e laudos técnicos, como o do Instituto de Terras de Mato Grosso (Intermat) e do Ministério Público Federal (MPF), bem como a perícia judicial, atestam a natureza pública das terras.
O HNT tentou contato com a defesa da empresa – voltada ao cultivo de milho, soja e à criação de bovinos para corte – para obter um posicionamento sobre a recomendação expedida pelo CEDH, mas não obteve retorno até o fechamento da matéria. O espaço segue em aberto para manifestações.
Questionado sobre as dificuldades para implementar a reforma agrária em Mato Grosso, o coordenador da CPT – Regional Mato Grosso, Welligton Douglas Rodrigues da Silva, apontou a grilagem.
“Eu falo daquela grilagem que é proporcionada por grandes empreendimentos que entram em terras públicas, que a maioria são terras públicas, e tomam de assalto aquela terra e desmata, coloca produção de monocultivo e não consegue regularizar […] A função social da terra tem prioridade. Terras devolutas têm que ser destinadas à reforma agrária. Depois a regularização fundiária, respeitando os limites de terra […] Só aqui no Estado de Mato Grosso que a gente vê grandes propriedades que são de áreas públicas, que estão na mão de uma só pessoa”, afirma.
(HNT)